
“Palavra impecável” - Erika Dantas
04.09 - 22.11.2025
ArteFASAM São Paulo
Palavra impecável
ensaio crítico - Manuela Saldarriaga H.
Eu vi um Quetzal. Para a cultura originária guatemalteca, o Quetzal veio primeiro do fôlego e logo do sopro dos deuses a uma árvore de embaúba. Na literatura mesoamericana, a ave cantava à liberdade e à fertilidade. Após a colonização, tem sido vista com o vermelho vibrante da ferida em seu peito e se comunica com o silêncio.
Em náhuatl, quetzal significa pluma e cóatl, serpente. Sua conjunção, Quetzalcóatl, dá sentido a esta e outras culturas do continente, a conhecida “serpente emplumada". Porque, como escreveu a poeta Chantal Maillard, «nenhum conceito pode ser imaginado se não por meio da imagem de algo singular».
Para os maias tz’utujil, a aparição da ave em ascensão ao vulcão San Pedro, em Santiago Atitlán, é também comunicação divina. Mas não a única. O vulcão, junto com seus irmãos Tolimán e Atitlán, e o lago homônimo, requerem do recolhimento para escutar o fogo que habita terra adentro.
Na cosmovisão indígena, desde um tempo mítico e não quantificável, os espíritos protetores da natureza se manifestam. A Cordilheira Vulcânica Centroamericana é conhecida como um antigo vórtice de poder perceptível no sossego da contemplação. Assim, com a palavra refugiada, as populações indígenas atendem e propagam a história telúrica que jaz em seu interior.
Essa poderosa vibração se reflete nos tecidos ancestrais onde se reproduzem as paisagens. Se convertem tanto em mantos- papel como em cultivo para nomear o que existe e, inclusive, seus estados secretos. Estes conservam o calor da palavra, que se aninha de forma subterrânea e sob sua pele.
Essa magia vive nos elementos. Os materiais minerais como o barro —cerâmica quando queimado— resistem ao passo do tempo. Os tecidos e linhas de algodão, uma fibra de origem vegetal, em contrapartida, mimetizam-se, com a terra, retornando sempre à origem. Assim, em estado de criação permanente, onde habita a calma, nasce a palavra. Outro ritual de aparição divina.
Estes trabalhos tomaram forma ali, em uma residência artística em San Lucas Tolimán. Em um lar chamado Qatzij que em idioma Kaqchikel se traduz «VERDADE» ou «PALABRA IMPECÁVEL». Cada peça é uma celebração do que foi observado por dentro e por fora, e em silêncio. É um testemunho tecido em miçangas para honrar a memória de um povo e o cuidado de um vínculo que generosamente compartilhou seu sentir comunitário.
As cores, como no peito do Quetzal, sobressaem nessa exposição assim como o apreço aos animais — representados aqui como um cachorro e um cavalo, o último cavalgando com uma planta de arruda no seu dorso como oferenda de proteção—. Os guardanapos se convertem em cobertura para a boca, dos potes, como uma delicada mantilha de cuidado. Em meio a uma quietude prolongada e com a sensação de que as palavras não são suficientes, e quando tudo simbolicamente se comunica, o têxtil ergue a voz por conta própria.
Fazer a tentativa de pronunciar uma palavra impecável é uma necessidade vital de guardar dentro do corpo —ou da cumbuca— toda essa energia. E que depois flua como serpente emplumada. É um sentido dinâmico o dos significados, assim como a expressão do espírito, mas quando tudo alce voo (e que assim seja) contenha sempre a honestidade radical e a ternura calorosa do ninho.
TOUR VIRTUAL 3D






Curadora PAULA BORGHI falando da exposição " AS AMAZONAS" na ArteFASAM Galeria. AGOSTO/2025