Elogio das superfícies

texto Pollyana Qintella

Alfredo Volpi, Ana Hortides, Arthur Pereira, Cela Luz, Isis Gasparini, Julia da Mota, Leonardo Luz, Lilian Camelli, Maria Leontina, Maria Andrade, Solange Pessoa, Thamyres Donadio e Ursula Tautz

25.06 - 31.07.2021 Belo Horizonte

Sabe-se que, a fim de colher alguma inspiração, Amadeo Lorenzato (1900-1995) costumava fazer longas caminhadas pelos arredores de sua casa em Belo Horizonte. Das deambulações saíam ideias, esboços, desenhos, fragmentos de memória e paisagem que migravam pouco a pouco para a pintura. Lorenzato pintava a síntese das banalidades que encontrava: topografias tortuosas, a terra avermelhada, um punhado de frutas, motivos vegetais, gente para cá e para lá. Nenhum grande evento, nada extraordinário. Ao contrário, sabia como poucos impregnar a paisagem do gosto pelas coisas singelas e miúdas. Lorenzato não pintava as coisas para que as víssemos — antes pintava para que víssemos como ele via. 

Algo parecido com esse procedimento está também presente na obra de Alfredo Volpi (1896-1988). O “insular do cambuci”, como diria o crítico Mário Pedrosa, era afeito aos hábitos simples e à vida quieta. Suas obras, de contribuição inestimável para a arte brasileira, são capazes de nos transportar para o imaginário da arquitetura popular e simultaneamente nos suspender no tempo e no espaço. O efeito lavado da têmpera, a “profundidade rasa” de suas transparências, há ali todo um gesto alheio à velocidade e produtividade neoliberais hoje vigentes. Resta um fundo de calmaria e repouso nas suas fachadas, mastros e bandeirinhas tão descomplicadas. 

Com ambos, Lorenzato e Volpi, partimos do pressuposto de que toda paisagem é uma construção subjetiva e em constante transformação, e que refletir sobre o ambiente que nos circunda é sobretudo compreender nossos modos de ver. É nessa direção que a exposição Elogio das superfícies se organiza. Aqui, investigamos relações sutis entre forma e paisagem, através de diálogos entre obras de artistas representados pela ArteFASAM Galeria e obras que compõem o seu acervo. 

Nosso percurso está povoado de certo fascínio por relevos, texturas e uma diversidade de formas orgânicas no diálogo entre o individual e o coletivo; o íntimo e o público. Em alguns casos, as formas da paisagem são componentes que afirmam uma identidade cultural, o pertencimento a um determinado lugar, a nostalgia das memórias longínquas da infância ou a projeção de outros mundos possíveis (é o caso de Ana Hortides, Lilian Camelli, Maria Leontina, Maria Andrade, Arthur Pereira e Ursula Tautz). Noutros, o entorno é mero pretexto para pôr em prática as mais variadas experimentações pictóricas, dando lugar a sínteses e abstrações sinuosas repletas de gosto decorativo, sintoma de ludismo e vocação lírica (vejamos Thamyres Donadio, Cela Luz, Leonardo Luz e Solange Pessoa). Não é raro também que muitas destas obras nos sugiram uma experiência sinestésica. Diante delas, acompanhamos volumes, incisões, curvas e reentrâncias que evocam pólens e aromas, ou sabores macios e ásperos. Há ainda Isis Gasparini, para quem caberiam os versos de Orides Fontela: “Na manhã que desperta / o jardim não mais geometria / é gradação de luz e aguda / descontinuidade de planos”; e Julia da Mota, que parece herdar o legado volpiano com a mesma brandura. 

Se o gênero da paisagem esteve por muito tempo vinculado ao que há de sublime e monumental, as imagens que aqui vemos reivindicam o horizonte no que há de onírico, menor; e chegam inclusive aos domínios íntimos da natureza-morta. São composições que desafiam nossa familiaridade, já que estão descoladas de qualquer geografia. Um convite para sonhar e fabular. 

Pollyana Quintella

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